CONCLUSÕES - DE IDA E VOLTA NO TEMPO

 

Temos tentado recapitular os mitos e representações que, imbricados uns nos outros, conformaram a religião civil da nação laica uruguaia. Podemos, ao final deste exercício, perguntar-nos  o por que de tantos investigadores uruguaios - Bayce (1922; Caetano (1995); Caetano e Geymonat (1997); Da Costa (1997, 1998); Pi Hugarte (1993b, 1997) - estudiosos de movimentos religiosos contemporâneos no Uruguai, terem dedicado maior ou menor atenção ao período de laicismo radical, que se inicia no Uruguai em meados do século XIX e madura nas primeiras décadas do presente século.

 

E, mais ainda, deveríamos nos perguntar por que esta inquietação pela temática religiosa - ora dirigida ao passado, ora ao presente -  manifesta-se no Uruguai de forma tardia (Da Costa, 1997; Pi Hugarte, 1993b), tanto no âmbito da antropologia como de outras ciências sociais.

 

A esse respeito, Frigerio (1993) falará que as características das

 

...diversas subculturas académicas (disciplinarias y nacionales) en las cuales pesarían las (...) tradiciones científicas específicas, las agendas políticas propias de un determinado grupo social en un momento particular de la historia de su país, y hasta la reproducción de preconceptos favorables o desfavorables a ciertas confesiones religiosas que se perpetúan dentro de los círculos académicos suelen influir sobre la elección de temáticas, objetos de estudio, metodologías y moldear las actitudes de los estudiosos frente a estos grupos. (Frigerio, 1993:8).

 

Quanto à peculiar “subcultura académica uruguaya”, convém consignar que apenas há pouco se tem conseguido sair do quadro descrito por Da Costa (1997:98), quadro que aponta que os preconceitos anti-religiosos ainda estão presentes em uma parte importante dos intelectuais e acadêmicos uruguaios[1].

Evidentemente, esta situação reduz as possibilidades de desenvolver investigações sobre o tópico religioso, ao mesmo tempo em que nos fala da perdurabilidade de alguns aspectos da religião civil tal como os indagamos.

Deste ponto de vista, a religião, “problema de cada um”, não merece ser tratada como uma problemática relevante que suscite o interesse da comunidade acadêmica em geral.

Esta primeira aproximação geral, não nos pode fazer esquecer o acréscimo de trabalhos sobra a temática religiosa a partir dos anos 80 e 90. O desenvolvimento e a visibilidade de velhos e novos movimentos religiosos no Uruguai nestas décadas, chamou a atenção de vários pesquisadores dentro e fora do Uruguai. Os estudos sobre movimentos e crenças religiosas em geral (Bayce, 1992; Da Costa, 1996); neopentecostais (Pi Hugarte, 1992a, 1992b); afro-brasileiros (Pi Hugarte,1993c,1998), catolicismo (Da Costa ,1998); os trabalhos de Oro sobre transnacionalização religiosa no Prata (1997, 1998, 1999), mostravam claramente que a “nação laica” - ainda viva (bastaria lembrar novamente as polêmicas parlamentares  do ano 1987 sobra a instalação de uma Cruz em honra à visita do Papa João Paulo II) tinha perdido sua força de outrora.

 

Neste mesmo período - coincidente no tempo - não deixam de chamar a atenção as diversas interrogações sobre a identidade uruguaia (Achugar, 1992, 1998; Caetano, 1992, Pareja e Pérez, 1987; Porzekanski, 1992; Verdesio, 1996; Viñar, 1992,), inquietações provenientes de diversas correntes e disciplinas. Aquela “igualdade homogênea”, aquela imagem da “sociedade hiperintegrada” como a denominara Rama (1987), enfim, aqueles mitos e representações que fizeram  a religião civil do Uruguai e que mostravam a nação uruguaia como “naturalmente vinculada” com a tolerância, o respeito das leis e da democracia, tinha mostrado suas pungentes limitações. Não debalde, mais de uma década de ditadura militar (1973-1985), tinha problematizado esta relação, embora as mobilizações contra ela, assim como sua posterior avaliação como “um acidente” (Demasi, 1995)[2], dentro do “natural” transcurso democrático do Uruguai, não deixavam dúvidas dos exercícios mitopráticos que se alimentaram  em parte dos mitos e representações que indagamos nesta dissertação.       

Por outra parte, se nestas preocupações pela identidade ingressavam não só novas reivindicações por parte de associações de afro-uruguaios[3] e indigenistas (Basini, 1999; Pi Hugarte, 1993), também ficava claro - pelo menos para nós - que a visível e “pública” diversidade religiosa não correspondia à matriz cultural laica de outrora, nem que a tal matriz, na medida em que, como sustentamos, se alimentava em mitos e representações constitutivas da nação e cristalizadas no sujeito-cidadão, pudesse operar em condições similares às de tempos atrás.

 

O Uruguai, assim, enfrenta-se ao desafio de inventar ou “reinventar” novos mitos e representações. A construção do “cidadão laico”, cujas fidelidades “secundárias” eram (e ainda em parte continuam a ser) guardadas para o âmbito privado, opaca-se frente a uma diversidade cultural e religiosa que é difícil de reduzir a uma unidade homogênea. Por outra parte, convém apontar - sinteticamente - alguns aspectos que permitem também pensar como os mitos e representações de outrora, seguem sendo atualizados.

O conceito de cidadania não deixa de ser pensado no Uruguai a partir de uma imagem “juridizada”. Não há reivindicações como em outros países, de “maior cidadania” ou, como refere Garcia Canclini para vários países de América Latina, não está presente o “...redefinir lo que se entiende por ciudadano, no sólo en relación con los derechos a la igualdad, sino también con los derechos a la diferencia.“ (García Canclini, 1995:20). Ser cidadão é, em boa parte no Uruguai contemporâneo, algo “natural” e a-problemático.

 

Outro aspecto: nenhum movimento religioso tem real incidência política. Quero ser claro: voltando a Giner, e sua “sacralización de la politeiya” (Giner,1994:148); no Uruguai não existem líderes religiosos de nenhum dos movimentos presentes que possam assumir, ao mesmo tempo, liderança política[4] .

 

A responsabilidade de gestão da esfera do público não  cabe no Uruguai, nem pode caber, a nenhuma liderança religiosa de um culto particular. Assim, embora os monumentos e manifestações religiosas possam ocupar espaços públicos, ou possam ser apresentados através da rádio e da TV, isto não os habilita a proceder à sacralização da politeya.

Política e religião continuam separadas, porque esta dimensão sacralizada da politeya é o palco de atualização e reconversão da religião civil. As transformações mitopráticas, não acrescentam ainda o acontecimento religioso.

         

Idas e vindas no tempo, a atual mito-práxis uruguaia mantém- se em suspenso. Se já os mitos e representações não são abrangentes nem produtores de uma totalidade, tampouco suas possibilidades de atualização tem desaparecido. Disto deriva o fato da conformação de uma nova identidade uruguaia estar presente[5].

 

Mas a primeira pergunta apenas tem sido respondida. Caberia, certamente, indicar que estas preocupações pelos mitos e representações que se desenvolveram no Uruguai desde meados do século XIX até as primeiras décadas do XX, não foram produto também de novas manifestações culturais que não encaixam nas “formações de diversidades” (Segato, 1997:233) produzidas classicamente no Uruguai.

 

A presença de novos movimentos religiosos no âmbito público, o questionamento (bem que minoritário) do casamento entre igualdade e homogeneidade; as limitações do próprio exercício mitoprático culturalmente herdado, perante contextos percebidos como diferentes, tem sido motivos fundamentais para que voltássemos a tentar nos situar na periodicidade estabelecida, estando cônscios, no entanto, de que a mito-práxis possui uma durabilidade maior do que o momento histórico no qual se formulam e reformulam os mitos e representações, eixos da identidade uruguaia, e ao mesmo tempo, que na atualidade uruguaia, pelos motivos já esboçados, a mencionada mito-práxis se problematiza e se transforma.

 

Apontemos de novo que o processo de conformação do Estado-nação uruguaio teve a ver com a produção do próprio Estado da nação uruguaia. No mencionado processo de conformação da nação, o Estado foi um dos produtores principais da religião civil uruguaia, religião civil da nação laica, com pretensões ao mesmo tempo incluintes (sem esquecer as assimetrias produtoras do Outro) e excluintes.

 

Incluintes, na medida em que se enunciavam numa totalidade abrangente, onde se pretendia que ficassem incorporadas todas as particularidades culturais e religiosas.

 

Esta inclusão, contudo, implicava de igual modo exclusões várias. Implicava uma fidelidade primeira- fidelidade à religião civil - e a exclusão e/ou privatização de outras fidelidades, transformadas assim em secundárias. Poderia se dizer mais ainda: a religião civil uruguaia tentou em mais de uma oportunidade deslocar diretamente  até o desaparecimento destas fidelidades “secundárias”. O “jacobinismo”, que Rodó (1930) já criticara, tentou erradicar a Igreja Católica de todo tipo de âmbito, bem como o conjunto de outras confissões, embora com menos fervor porque não tinham sido religiões de Estado e porque não exigiam  um tratamento preferencial por parte do mesmo. Por outro lado, diversas correntes migratórias apoiaram o processo de laicização, na medida em que lhes permitia fugir da égide da Igreja Católica (caso da imigração protestante) e, além disso, lhes permitia - por primeira vez - desenvolver (no âmbito privado, claro), suas particularidades religiosas e culturais.

 

A Igreja Católica, por seu lado, frente ao embate laico, virou-se sobre si mesma, num vasto exercício de autoprivatização. Ao ser expulsa por parte do Estado da maioria dos âmbitos que ocupava - até chegar à separação formal do Estado em 1917 - tentou, fechando-se sobre si mesma, diferenciar claramente “seu mundo” (Sansón, 1998) do mundo exterior que a atacava. Contudo, como vimos nas escassas referências que se apresentam nos textos de leitura utilizados nas escolas uruguaias, o catolicismo colaborou também com a  produção de cidadãos, mais do que com a  difusão e propagação do seu corpus (propagação que não teria sido tolerada pelos reformistas da escola, nem pelo Estado, ao extremo de se erradicar, em 1909 - com leves exceções nas menções de alguns textos - toda referência explícita a qualquer denominação religiosa nas escolas).

 

Os mitos e a mito-práxis , em culturas diferentes às estudadas por Sahlins (1997a), precisam de âmbitos comuns de circulação e produção. Este âmbito em comum, para o caso uruguaio,  foi a escola pública laica, gratuita e obrigatória, escola à que todos deviam assistir para se formar e se conformar em cidadãos. A escola desempenhou um papel fundamental na construção da nação laica, habilitando um consenso simbólico comum de mitos e representações que puderam ser atualizados e re-desenhados em forma diferente, mas aos quais se devia (e inclusive se deve) necessariamente recorrer. Os textos de leitura (leitura obrigatória) que nela se utilizaram, mostram os principais mitos e representações da religião civil uruguaia. O mito da igualdade (preponderante e incluinte), vai acompanhado de toda uma configuração mítica na qual não cabe limitar unidades míticas, senão mostrá-las em sua imbricação, como fizemos no capítulo 7. 

O laicismo, o caro laicismo da nação uruguaia, mostra-se em sua produtividade como religião civil da nação, pedra angular no reconhecimento simbólico de si mesma.

Vale, enfim, recordar os escassos estudos sobre os textos utilizados na escola uruguaia (Bralich, 1990; Resenite, 1987; Rodríguez Villamil, 1994).  Os textos - disseminados em diversas bibliotecas, embora fundamentalmente concentrados no Museu Pedagógico do Uruguai - fatigam, sem dúvida, o trabalho do investigador. Porém, pensamos que todo estudo, implica algo de “dessacralização” de seu objeto (caso este possuir algo de sagrado), pelo qual, abordar os textos de leitura obrigatória nas escolas, implica também interpelar a construção identitária uruguaia, e se perguntar, finalmente, o porquê da preponderância de determinados arbitrários culturais (Bourdieu, 1995, 1998) em vez de outros. Acredito que o fato de considerar a escola pública como um “dado da realidade”, e assim mesmo, a veneração que ainda inspira, dificulta os trabalhos da produção de mais pesquisas neste sentido.

         

Ao estudar a religião civil da nação laica, creio ter conseguido compreender um pouco melhor alguns aspectos da construção identitária uruguaia, à custa de entender que des-substancializar a identidade de uma nação (especialmente quando é a própria), implica também considerar - antropologia contrafática - como poderia ter sido diferente. Parando neste ponto, e pensando na incidência do Estado na construção da nação uruguaia, e os conflitos simbólicos e não simbólicos nos quais este participou na sua consolidação e na construção da mencionada nação, acabo com uma citação de Bourdieu (1997):

 

 Por este motivo no hay sin duda ningún instrumento de ruptura más poderoso que la reconstrucción de la génesis: al hacer resurgir los conflictos y las confrontaciones de los primeros comienzos, y con ello, las posibilidades descartadas, reactualiza la posibilidad de que las cosas hayan sido (y sean) diferentes y, a través de esta utopía práctica, vuelve a poner en tela de juicio la posibilidad por la que, entre todas las demás, se ha optado. (Bourdieu, 1997:98).   



    [1] Corresponde citar como exceção o Programa de Antropologia da Religião dirigido pelo Prof. Tit. Renzo Pi Hugarte (Dpto. De Antropologia Social e Cultural, Universidade da República); as pesquisas desenvolvidas por Néstor Da Costa no quadro da Universidade Católica do Uruguai e no Instituto OBSUR; os trabalhos de Bayce no quadro da Universidade da República e as investigações de Gerardo Caetano e Roger Geymonat, no quadro do Instituto OBSUR.

 

 

    [2]  Desta maneira, a oposição à ditadura militar uruguaia (1973-1985), baseou sua mito-práxis em todos os acontecimentos concatenados, que faziam do Uruguai um país “essencialmente” democrático. A ditadura era, portanto, uma discontinuidade que não correspondia à essência da nação uruguaia. A oposição sustentou-se na “… reivindicación de las instituciones y de la convivencia democrátrica como datos esenciales de las existencia de Uruguay como nación.” (Demasi, 1995:35).

 

 

 

    [3] Por exemplo, MUNDOAFRO, ONG fundada em 1989. 

 

 

    [4] Assim, é impensável no Uruguai o fenômeno que se dá no Brasil da incidência de correntes evangélicas, pentecostais e neopentecostais na vida política do país.

Ver (entre outros) sobre a relação entre política e religião no Brasil: Cortén (1996); Freston,  (1993).

O último gesto de um personagem político, dirigido a alguma corrente religiosa foi a visita que realizara Yamandú Fau (Ministro da Educação e Cultura do Uruguai), à Igreja pentecostal de origem argentina “Misión vida para las naciones”, liderada pelo Pastor Márquez durante o ano eleitoral 1999. A visita a um populoso batizado coletivo desta igreja, não rendeu muitos votos. O atualmente ex-ministro obteve, nas eleições nacionais uruguaias de 28 de outubro de 1999 um pouco mais de 90 votos.

 

 

    [5] Com as diferenças do caso, Williame (1993) coloca os problemas que atravessam a religião civil francesa na atualidade perguntando-se: “Comment manifester une religion civile dans une collectivité où  les acteurs revendiquent de plus en plus leur autonomie par rapport à toute tutelle collective, où l’Etat se voit renvoyer à un rôle de gestionnaire et de régulateur et où la société civile s’éprouve comme pluraliste?.” (Willaime, 1993:577).